sexta-feira, 1 de julho de 2011

Um trecho interessante de se ler

Vou tentar explicar esse trecho pra tentar fazer vocês captarem o que ele expressa... É de um livro chamado "O Dia das Formigas", o segundo da trilogia "O Império das Formigas". No livro um grupo de humanos descobre como se comunicar com as formigas, que são seres pensantes como nós. Algumas observações importantes para a leitura: o "nome" das formigas são dados por números ordinais e os humanos são chamados pelas formigas de Dedos.  Nesse trecho eles perguntam o veredicto de uma das formigas sobre ajudá-los a chegar numa "cidade-formigueiro" para fazer um negócio lá desimportante para o post. Para decidir entre ajudá-los ou não, a formiga quer conhecer melhor a civilização humana para saber se vale a pena. Assim, colocam-na para assistir uma mini-TV para avaliar os humanos. E aí é o que acontece quando ela termina essa avaliação:

(O que tá em itálico é a conversa entre os humanos e a formiga. Emissão representa a fala dos humanos e Recepção da formiga)

"Emissão: Está disposta agora a nos guiar até Bel-o-kan?, ela perguntou a 103ª.

Houve um instante de silêncio, durante o qual o coração de Letícia bateu com toda a força. A seu lado, os outros também esperavam ansiosos o veredicto mirmecoano...

Recepção: Querem então saber qual o meu veredicto? Está bem. Creio já ter visto o bastante para poder julgá-los.
 
Ela desviou a cabeça da tela da televisão e se postou sobre as patas traseiras.

Recepção: Não vou dizer que os conheço perfeitamente, é claro, a civilização de vocês é tão complicada... mas...  na verdade, já pude me dar conta do essencial.
 
Ela os fazia esperar, esmerava-se na expectativa que queria criar. 103ª era realmente experiente no que se referia à manipulação dos indivíduos.

Recepção: A civilização de vocês é muito complicada, mas vi o bastante para compreender o essencial. Vocês são animais perversos, desrespeitosos com relação a tudo que os circunda, unicamente preocupados em acumular o que chamam “dinheiro”. Suas retrospectivas históricas são horríveis: apenas sucessões de mortes em maior ou menor escala. Primeiro vocês matam e depois discutem. Da mesma maneira que vocês se autodestroem e destroem a natureza.
 
As coisas começavam mal. Os três seres humanos não tinham previsto tanta dureza.

Recepção: Há, no entanto, em vocês coisas que me fascinam. Ah! Os seus desenhos! Gostei, sobretudo de um Dedo...Leonardo da Vinci. A ideia de fazer desenhos para mostrar a sua interpretação do mundo e fabricar objetos inúteis unicamente pela beleza estética é fabulosa! Como se fabricássemos perfumes não simplesmente para comunicar, mas só pela felicidade de respirá-los! Essa beleza gratuita e inútil que vocês chamam de “arte” é a vantagem que têm sobre a nossa civilização. Não temos nada assim em nossas cidades. A civilização de vocês é rica em arte e em paixões inúteis. 

Emissão: Concorda então em nos conduzir a Bel-o-kan?

A formiga ainda não queria responder.

Recepção: Antes de chegar a vocês, encontrei baratas. E elas me ensinaram coisas. A gente gosta de quem é capaz de gostar de si, a gente ajuda quem tem vontade de ajudar a si mesmo...


Agitou as antenas, segura de si e da força dos seus argumentos.
    
Recepção: É esta a questão que me parece importante. No meu lugar, julgariam positivamente a própria espécie?

Essa não! Não se devia, é claro, fazer a pergunta a Letícia Wells. Nem a Arthur Ramirez.

A formiga prosseguiu tranquilamente o seu raciocínio:
   
Recepção: Vocês compreendem? Gostam de si mesmos a ponto dos outros terem vontade de gostar de vocês?
   
Emissão: Bem...
   
Recepção: Se não gostam de si mesmos, como podemos esperar que um dia gostem de seres tão diferentes quanto nós?
   
Emissão: Quer dizer...
   
Recepção: Estão procurando os feromônios certos para me convencer? Não procurem mais. As explicações que eu esperava de vocês a televisão me deu. Vi documentários, reportagens em que Dedos se ajudavam mutuamente, vinham de ninhos distantes para socorrer outros Dedos, em que Dedos rosados cuidavam de Dedos marrons. Nós, formigas, como nos chamam, jamais faríamos o mesmo. Não socorremos os ninhos afastados nem socorremos formigas de outras espécies. Além disso, vi publicidades de ursinhos de pelúcia. São apenas objetos e, no entanto, Dedos lhe fazem carinhos e beijam. Os Dedos têm então um excedente de amor para dar.
   
Eles podiam esperar tudo, exceto isso. Não que a espécie humana seduzisse um não-humano graças aos desenhos de Leonardo da Vinci, aos médicos aventureiros e aos ursinhos de pelúcia!
  
Recepção: Isso não é tudo. Vocês cuidam bem das suas crias. Esperam que os Dedos do futuro sejam melhores que os de hoje. Aspiram ao progresso. São como nossas soldadas, que se sacrificam para fazer uma ponte pela qual passarão as irmãs, para atravessar um rio. As jovens vão conseguir passar e, para isso, as anciãs estão dispostas a morrer. Sim, tudo que vi, filmes, noticiário e publicidade, lamentava serem apenas o que são, mas mantinha a esperança de melhorarem. E dessa esperança nasce o “humor” de vocês, nasce a “arte”...
   
Letícia tinha lágrimas nos olhos, Fora preciso uma formiga lhe explicar a espécie humana para que aprendesse a amá-la. Depois do discurso de 103ª, ela nunca mais seria a mesma. Sua humanofobia acabava de ser curada por uma formiga! Teve repentinamente vontade de conhecer melhor seus contemporâneos. É verdade que alguns eram formidáveis. Aquela formiga tinha compreendido isso com algumas horas de televisão, enquanto ela passara a vida inteira sem perceber.”

(Werber, Bernard. O dia das formigas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008. p. 422-424)

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